Literatura russa: uma viagem inspirada nos grandes escritores
Assim como a Rory Gilmore, eu também vivo em dois mundos, e um deles é um mundo de livros. Então quando eu viajei para a Rússia foi como se meus dois mundos colidissem. A literatura russa foi minha inspiração para um roteiro de viagem de reencontro com os grandes autores que sempre li e admirei.
A Rússia dos grandes escritores
Do meu albergue em Moscou, eu olhava a Praça Pushkin e imaginava o momento em que ela foi inaugurada, o discurso de Dostoiévski que foi tão aclamado que até seu rival Turgueniev se comoveu.
Toda vez que eu pegava um metrô, eu pensava feliz que minha estação era a Pushkinskaia (em homenagem a Pushkin), que na outra linha é chamada de Tchekhovskaya (de Tchekhov), e que lá do lado tinha a Maiakovskaia (de Maiakóvski). Andar de metrô em Moscou é percorrer a história e a cultura da Rússia.
Quando cheguei em São Petersburgo, saí do metrô direto para a Avenida Nevsky e, quando virei no Canal Griboiedov pela primeira vez, não me emocionei pela vista da Catedral de Kazan, do Edifício Singer ou da Catedral do Sangue Derramado, embora seja uma vista espetacular… Me emocionei porque imediatamente lembrei que era lá que a Sônia de Crime e Castigo morava.
Uma viagem literária na Rússia
Eu sempre tinha sonhado em ir para a Rússia e sempre quis que fosse uma viagem sem pressa, por isso acabei passando três meses lá trabalhando com o workaway em albergues russos.
Foi uma época de peregrinação literária: visitei 14 apartamentos-museu dedicados a alguns dos meus escritores preferidos, além de outros museus, de lugares famosos de romances, de estátuas e homenagens nas ruas.
Roteiro inspirado em Dostoiévski
No rastro de Foídor Dostoiévski, meu escritor preferido, comecei pela casa onde ele viveu até a adolescência, em Moscou (ulitsa Dostoyevskogo 2). Ela fica na dependência de um hospital para os pobres, onde seu pai era médico.
Sua infância se passou ali, e a exposição da casa-museu conta a história da sua formação, de sua grande amizade com o irmão, mas também das tragédias que ele presenciou desde muito novo.
Já em São Petersburgo, meu roteiro incluiu o último apartamento do escritor (Kuznechnyy Pereulok, 5/2), na esquina com a rua Dostoiévski. Ele viveu ali com sua esposa, Anna, e seus dois filhos a partir de 1878. O relógio no escritório está parado exatamente na data e horário de sua morte: quarta-feira, 28 de janeiro de 1881, às 8h36.
Visitei também outros lugares importantes da sua vida em São Petersburgo, como a prisão onde ele ficou em confinamento solitário por meses. Estive na praça Semenovski, hoje chamada Pionerskaya Ploschad, onde ele sofreu sua falsa execução, e também na praça Sennaya, que ele chamava de “baixo-ventre” de São Petersburgo e é central em seus livros.
E fiz questão de levar flores ao seu túmulo na Necrópole dos Artistas do Mosteiro Aleksandr Nevski.
Crime e Castigo em São Petersburgo
“Ao cair da tarde em um início de julho, calor extremo, um jovem deixou o cubículo que subalugava de inquilinos na Travessa S., ganhou a rua e, ar meio indeciso, caminhou a passos lentos em direção à Ponte K.” (Cena de Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, 1866)
Fiódor Dostoiévski usou como cenário vários lugares próximos aos endereços onde morou, mas sem indicar os locais exatos no livro. A “Travessa S.”, por exemplo, se refere à Stolyarnyy, enquanto a “Ponte K.” é a Kokushkin.
Fiz um itinerário pelos lugares de Crime e Castigo, a começar pela casa de Raskolnikov (Stolyarny Pereulok 5, próximo à esquina com a rua Grazhdansky). Também passei pela casa da Sônia (nab. kanala Griboyedova 73), que no livro era verde e hoje é amarela, a casa da velha usurária e pela delegacia de polícia.
Como Dostoiévski usava prédios que existiam na cidade como inspiração, dá para encontrá-los no mapa, e até tentar fazer como Raskolnikov e contar os passos até a casa da velha usurária (embora sejam bem mais que 730…).
O Mestre e Margarida: o diabo em Moscou
Também fiz o itinerário de Mestre e Margarida, livro do escritor russo Mikhail Bulgakov, que narra a satírica chegada do diabo em plena Moscou comunista dos anos 1930. Dizem que a música “Sympathy for the Devil”, dos Rolling Stones, foi inspirada nesse livro.
Se der sorte, você encontra nas Lagoas do Patriarca (Patriarshiye Prudy), onde o romance começa, uma placa avisando os incautos para não conversar com estranhos – o grande erro de Berlioz e Bezdmomni.
Bulgakov frequentemente visitava o lago, que foi onde ele conheceu duas de suas esposas. É uma parte de Moscou super agradável, cheia de restaurantes bons e patinação no gelo no inverno.
Tive curiosidade de visitar o apartamento maldito onde Woland, o diabo, se hospeda quando ele vem provocar o caos em Moscou, e onde o próprio Bulgakov viveu (Bolshaya Sadovaya ulitsa 302-bis). Era um apartamento dividido, chamado de kommunalka na época da União Soviética.
O prédio todo se tornou um lugar de peregrinação literária. Além desse apartamento (nº 50) onde hoje é o Museu Bulgakov, há outro no térreo com coleção de objetos do autor e estátuas de diabos. Nas escadas, fãs do romance escrevem declarações de amor ao livro e seus trechos preferidos, enquanto no pátio ficam esculturas de alguns dos personagens do romance, obra de Aleksandr Rukavishnikov.
Andando pela Praça Pushkin e virando na rua Tverskaya, dá para ver um arco na interseção com a Bolshoy Gnezdnikovsky Pereulok, onde o Mestre e Margarida teriam se conhecido. Já o lugar onde o diabo deu seu grande baile é hoje a embaixada americana, então só olhei de fora, mas de lá se tem uma vista grandiosa de Moscou.
A casa de Tolstói em Moscou
O crítico George Steiner dizia que nenhuma escolha diz mais sobre você do que sua preferência entre Dostoiévski ou Tolstói, e eu já fiz a minha escolha, sou time Dostoiévski, mas ainda assim dei uma chance à casa do conde em Moscou (ulitsa Lva Tolstogo 21).
Autor de Guerra e Paz e Anna Karênina, Liev Tolstói vinha família aristocrática e teve com isso uma série de dilemas ao longo da vida. Sua casa é dividida, metade a vida aristocrática que sua família levava, metade dominado pelas suas ideias sobre a vida simples – se é que dá para ser simples em um casarão. Ele cuidava da propriedade e fabricava botas de couro artesanalmente.
E existe ainda o Museu Estatal Liev Tolstói (Ulitsa Prechistenka, 11/8), criado pelos bolcheviques em um prédio histórico – que tem uma exposição menos pessoal, mais focada em sua obra literária.
Convento de Novodevichy
Também vale visitar o Convento de Novodevichy, que Tolstói costumava visitar, um lugar lindo e arborizado, que testemunha a história política e cultural da Rússia. O convento figura em suas principais obras: é o local onde Pierre quase foi executado em Guerra e Paz, e onde Levin encontrou Kitty pela primeira vez em Anna Karênina, patinando no lago ao lado.
Não deixe de dar uma volta no cemitério de Novodevichy, onde jazem grandes personalidades russas. Lá estão os túmulos de Mikhail Bulgákov, Nikolai Gógol, Anton Tchekhov e o “poeta da revolução” Vladimir Maiakovski, além do diretor de cinema Serguei Eisenstein – que fez “O Encouraçado Potemkin”.
Pushkin, pai da literatura russa
Toda essa tradição literária começou com Alexander Pushkin, poeta e romancista que introduziu a Rússia na cena cultural da Europa moderna e marcou o início das revistas literárias na Rússia. Seu trabalho foi uma enorme influência para os demais escritores citados aqui, e tem museus dedicados a ele tanto em Moscou quanto em São Petersburgo.
Pushkin é considerado o pai da literatura russa, por ter originado o estilo de linguagem cheio de nuances que caracterizou a produção do país desde então. Ele conjugou elementos poéticos e da herança histórica do idioma com a linguagem coloquial, trazendo também referências de outras línguas para enriquecer vocabulário russo.
Em Moscou, fica a casa onde Pushkin e sua esposa Natalya moraram logo assim que se casaram (ulitsa Arbat 53). Em frente à casa, na famosa rua Arbat, tem uma estátua do casal (imagem em destaque lá no alto da página).
Já em São Petersburgo, fica o Apartamento Memorial de Pushkin (nab. reki Moyki 12), que dá maior enfoque à história de sua morte – em um duelo, por ciúmes da esposa, com o francês D’Anthes. No apartamento, podemos ver desde a carta que colocou a necessidade de “defender sua honra” até as pistolas e as roupas sangrentas do poeta.
O duelo em si é também um fato literário, pela semelhança com a cena escrita por ele 5 anos antes nos contos “Eugênio Oneguin”, e porque dizem que se tornou depois uma das inspirações para o Conde de Monte Cristo.
Museu Literário Casa Pushkin no Instituto de Literatura Russa
Pushkin! Liberdade secreta
Cantamos atrás de você!
Dê-nos a sua mão em caso de mau tempo,
Ajude-nos na luta silênciosa!
(poema Pushkin House, de Aleksandr Blok, 1921)
Na ilha Vassilievski em São Petersburgo, há no Instituto de Literatura Russa um museu chamado afetuosamente de Casa de Pushkin (o que pode causar confusão com seus apartamentos memoriais).
O museu tem uma coleção enorme de objetos de autores do século 19, incluindo Dostoiévski, Gógol, Lermontov e o próprio Pushkin. Gostei especialmente dos mapas que Tolstói mantinha da ocupação napoleônica na Rússia, para ter certeza que estava sendo preciso ao escrever Guerra e Paz.
Poesia de Anna Akhmatova
Senão… o ardente ruído do verão
é como uma festa debaixo da janela.
Há muito tempo eu esperava
por este dia brilhante, esta casa vazia.
(poema de Anna Akhmatova, O veredicto – Casa Fontán, 1939)
No meu roteiro literário em São Petersburgo, visitei também a famosa Casa Fontán (Liteyny Prospekt 53), que Anna Akhmatova menciona tanto em sua poesia, e onde ela escreveu os versos mais pungentes sobre o stalinismo. Inicialmente o amor era sua grande temática, mas depois os períodos do Grande Terror e do Cerco de Leningrado a marcaram profundamente.
No final da vida, sabendo que a casa estava cheia de escutas, ela escrevia poemas e passava para amigos, que tinham que decorá-los durante a conversa. Quando eles iam embora, ela os destruía. Sua obra passou muito tempo sob censura, circulando apenas clandestinamente – prática que se chamava “samizdat”.
Em 2006, um monumento foi erguido em São Petersburgo em homenagem a Anna Akhmatova e a estátua, embora não esteja à porta da prisão de Kresty, como ela havia pedido no epílogo de Réquiem, fica bem próximo, na outra margem do rio Neva (Shpalernaya ulitsa, 40А). Diante dessa prisão, ela passava horas à espera de notícias de seu marido Nikolay Punin e seu filho Lev Gumilev, ambos presos políticos na década de 1930.
Gorki: Art Nouveau na Rússia
Admirado por Lenin e Stalin por suas ideias marxistas, o escritor Maksim Gorki foi condecorado e presenteado com a Mansão Riabushinsky (Malaya Nikitskaya ulitsa, 6/2), em Moscou. Gorki relutou em aceitar a luxuosa mansão, onde vivia com medo do governo.
Os quartos contam a história do escritor, enquanto a mansão revela outras curiosidades históricas. Projetada pelo mais famoso arquiteto de Art Nouveau da Rússia, Fiódor Schechtel, a Mansão Riabushinsky tem uma belíssima escadaria em formato de onda e esconde uma capela secreta, já que o homem que a mandou construir fazia parte em segredo de uma igreja banida nos últimos anos do tsarismo.
Ao lado do pátio da casa de Gorki, fica o menos visitado apartamento de Aleksei Tolstói (ulitsa Spiridonovka, 2), considerado como um dos poucos escritores “do sistema” que ainda são lidos hoje em dia. Sobrinho do conde Tolstói, Aleksei aderiu às ideias soviéticas em nome de uma vida confortável, o que lhe rendeu o apelido de “camarada-conde”. Ao ver seu apartamento, fica evidente vestígio do luxo burguês.
A “única casa” de Nabokov
Em São Petersburgo, a casa de Vladimir Nabokov (Bolshaia Morskaia ulitsa 47) tem uma grande parte de sua exposição dedicada às suas obsessões, como o xadrez e as borboletas – que ele colecionava e desenhava com precisão científica.
Depois que a casa foi tomada da família na Revolução de 1917, Nabokov nunca mais quis ter uma casa. Mesmo com a independência financeira que ele conseguiu com a publicação de Lolita, morou de aluguel no exílio e viveu até mesmo em hotéis – e dizia que sua casa de infância era “a única casa no mundo”.
Casas-museus de escritores russos
O dia estava maravilhoso e ensolarado. Na avenida Nevsky havia uma multidão de gente. Uma verdadeira cascata florida de damas derramava-se por toda a calçada… (cena do conto O Nariz, de Nikolai Gógol, 1836)
Mais que a oportunidade de mergulhar no universo de suas obras, visitar a casa de personalidades históricas é também conhecer suas histórias pessoais. Estar diante daquilo que viveram Dostoiévski, Anna Akhmatova e Nabokov é realmente emocionante.
Em Moscou, fui ainda na casa onde Nikolai Gógol (Nikitsky boulevard 7a), em um acesso de loucura, queimou o manuscrito com a continuação de Almas Mortas.
E vi a casa dividida de Anton Tchekhov (Sadovaya-Kudrinskaya ulitsa 6), com uma entrada para quem procurava o médico e uma para quem procurava o escritor. Como ele dizia que a medicina era sua esposa e a literatura, sua amante, achei apropriado.
A Noite dos Museus na Rússia
Visitei a casa de Aleksandr Blok em São Petersburgo (ulitsa Dekabristov 57) durante a Noite dos Museus, quando fãs vestidos como ele liam a sua poesia. Nessa noite, mais de uma centena de museus ficaram abertos até às seis da manhã, com programa específico, bilhete único, e cinco linhas de ônibus especiais só para ligar os museus.
Fui de lá para uma exposição de arte revolucionária e outra de Dalì, assisti a um concerto e vi uma exposição de instrumentos musicais antigos no Museu da Música do Palácio Sheremetev, e então terminei a noite na Filarmônica de Petersburgo.
Da literatura russa para o teatro
Em Moscou, vi também os apartamentos de Meyerhold (Bryusov Pereulok, 12) e Stanislavsky (Leontyevsky Pereulok 6), dois diretores de teatro modernistas que trabalharam com alguns escritores e dramaturgos citados aqui. As exposições mostram suas concepções diferentes do teatro, que revolucionaram o teatro no início do século XX e que ainda influenciam atores hoje.
Em São Petersburgo, atrás do Teatro Aleksandrinski, visitei ainda o Museu da Música e do Teatro (Ploshchad Ostrovskogo 6), que apresenta figurinos, posters e maquetes das montagens de peças e óperas famosas, com destaque para a época do Império Russo e o período soviético.
A viagem literária não termina
Esse foi o fim da minha viagem literária, pelo menos por enquanto. É que eu sou o tipo de pessoa que quando lê um livro, coloca outros vinte na lista de “para ler”, e quando viaja, coloca outros vinte lugares na lista de “para conhecer”.
Tem tantos outros autores cujos museus estavam fechados (Maiakóvski chegou a doer) ou ficam em outras cidades, além de escritores que conheci durante a viagem por recomendação de amigos russos, que ainda tenho que conhecer. Então espero que essa viagem no rastro dos meus autores russos preferidos tenha continuações em breve.
No mapa acima, você encontra os locais citados ao longo do texto (e mais algumas surpresas), incluindo estátuas, casas-museus e cenários dos livros. O mapa abre em São Petersburgo, navegue para encontrar locais também em Moscou.
Ao longo do texto, estão indicados alguns livros a partir dos títulos ou nome do autor – dando preferência às traduções diretas do russo, quando disponíveis. Eventuais compras realizadas a partir de links afiliados podem gerar uma pequena comissão que ajuda a manter os custos do servidor do site – sem que você tenha que pagar nem 1 centavo a mais por isso. Saiba mais sobre as políticas editoriais.
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