Provo: a contracultura que fez Amsterdam se tornar o que é
O que parece só uma estátua de um menino foi o epicentro de um dos mais importantes movimentos de contracultura do mundo. A praça Spui, no centro de Amsterdam, foi ponto de encontro do Provo, um grupo anarquista que mudou a história da Holanda para sempre.
Foram eles que, pela primeira vez, levantaram as bandeiras da legalização do consumo de drogas e da bicicleta como meio de transporte em Amsterdam. A Holanda que a gente conhece hoje não seria a mesma sem eles!
Também foram eles criaram o primeiro projeto de compartilhamento de carros do mundo (35 anos antes do Uber!) e propuseram a taxação de poluição do ar antes de se falar em aquecimento global.
Provocação contra o consumismo
O nome do movimento veio da palavra provocatie (provocação em holandês), que era exatamente o que eles faziam – provocavam as autoridades e as grandes instituições para chamar a atenção da população para suas causas.
Manifestações políticas se misturavam a intervenções artísticas nonsense para debochar das regras sociais, especialmente dos valores da monarquia Orange e da burguesia consumista.
Eles tinham consciência de que a sociedade era pautada pelo espetáculo e por isso usavam táticas que incluíam trotes para a polícia, invenção de boatos sobre a família real e pichações engraçadinhas em cima de outdoors de propaganda… tudo para causar escândalo, mas sem nunca usar violência.
Protestos anti-tabagistas
Os protestos anti-tabagistas eram um de seus maiores focos. É só ver um episódio da série Mad Men para lembrar o que o cigarro representava socialmente na década de 60.
Os provos viam o cigarro como a droga dos consumistas, não entendiam por que o cigarro era liberado enquanto a maconha era proibida, e por isso criaram uma série de ações de desobediência civil para reivindicar a legalização da maconha.
Espalharam por Amsterdam centenas de maços com desenhos fluorescentes, alguns com baseados de verdade e outros falsos (feitos com algas, palhas, comida de gato, pedaços de cortiça), fazendo com que centenas de cidadãos fizessem denúncias nem sempre reais, gerando estresse e confusão na polícia.
E assim surgiu o que foi chamado de Marihuettegame, um jogo em que ganhava ponto quem fosse pego pela polícia fumando alucinógenos fake, como chá ou orégano… rs rs!
“Para dar caça a alguns consumidores de erva, os agentes da polícia, notórios consumidores de nicotina, efetuam incursões-surpresa, que depois são propagandeadas na imprensa, mediante artigos escritos por jornalistas alcoolizados e lidos por um público que, por sua vez, é escravo da televisão ou da nicotina”, questionava Robert Jasper Grootveld, um dos fundadores do movimento.
Praça Spui, em Amsterdam
A escolha da praça Spui para o ponto de encontro dos manifestantes não era por acaso: a estátua do menino foi doada à cidade pela Hunter Tobacco Company, então fazer protestos anti-tabagistas ali ganhava um toque irônico a mais.
Além disso, como boa parte das redações de jornais ficavam ali por perto, era um lugar estratégico para armar o circo e chamar atenção da mídia.
Amsterdam à frente do tempo
Outras campanhas sensacionais se seguiram, todas bem à frente de sua época! Eles questionavam o uso de carros e seu impacto negativo na vida urbana em pleno boom da indústria automobilística. Defendiam a venda de camisinhas a preços baixos antes da AIDS ser uma preocupação mundial. Propunham a taxação de poluição do ar antes de se falar em aquecimento global.
O mais interessante era que os Provos iam além dos protestos e criavam propostas de soluções para problemas sociais e ambientais: os chamados Planos Brancos (The White Plans).
Compartilhamento de carros elétricos
O Plano do Carro Branco (White Car Plan), por exemplo, tinha como proposta o uso coletivo de pequenos carros elétricos, que eles chamaram de “Witkar“. Eles levaram a ideia à Câmara Municipal e chegaram a implementar uma fase piloto, que atendeu 4 mil usuários!
Foi um dos primeiros projetos de compartilhamento de carro do mundo (35 anos antes do Uber!), com direito a um software de controle nas estações, mais ou menos como os patinetes ou as bicicletas compartilhadas que temos hoje.
Plano das Bicicletas Brancas
O mais conhecido foi o Plano das Bicicletas Brancas (White Bicycle Plan), que propunha a restrição da circulação de carros no centro de Amsterdam, para aumentar a adesão ao transporte público, e a disponibilização de bicicletas para uso coletivo.
Os próprios ativistas distribuíram 50 bicicletas brancas pela cidade, com o código do cadeado escrito nelas mesmas, para que qualquer pessoa pudesse usá-las.
A origem do movimento Okupa
A moradia urbana era outra questão importante para os ativistas de Amsterdam. Enquanto os moradores tinham pouca oferta de apartamentos para alugar, especuladores imobiliários continuavam comprando prédios e deixando-os fechados, para manter os preços subindo.
Os manifestantes começaram então a pintar de branco as portas dos prédios vazios, para sinalizar que às pessoas em busca de moradia que aquele lugar poderia ser ocupado.
As ocupações, que ficaram conhecidas como “squatting” ou “okupa”, se tornaram recorrentes em ondas anarquistas no mundo todo e persistem até hoje – não apenas em Amsterdam mas em muitas outras cidades do mundo, como Londres e Barcelona.
Inspiração para hippies e punks
Como todo movimento anarquista que se preze, o Provo durou pouco. As primeiras brincadeiras começaram em 62, ganharam força em 1965 e, dois anos depois, Robert Jasper Grootveld e seus parceiros declararam o movimento encerrado.
Nesse curto tempo de existência, tiveram uma influência enorme nas revoluções francesas de Maio de 68 e no movimento hippie americano, além de ter dado início a uma série de novos grupos ativistas na Holanda.
Não foi à toa que John Lennon e Yoko Ono escolheram Amsterdam para ser o local de seu primeiro protesto “bed in”, em 1969, e trouxeram uma bicicleta branca para o quarto.
Revolução cultural e a música
À medida que fui descobrindo a história desse movimento, uma pergunta não me saía da cabeça: por que ninguém conhece o Provo?? Por que eu nunca tinha ouvido falar deles antes?
O italiano Matteo Guarnaccia, que estudou diversos movimentos de contracultura no mundo e publicou um livro sobre o Provo, chegou a uma boa teoria sobre o que limitou o crescimento do Provo para a escala mundial.
Ele explica que, além de ter seus manifestos e tabloides escritos em holandês e uma atuação essencialmente local, “faltou o megafone da música pop”. Os hippies e punks tinham grandes aliados na música para difundir suas mensagens, mas os provos não.
Ainda sim, mesmo sem ter tido um “Sex Pistols”, os Provos tiveram ao menos uma “Vivienne Westwood”. Não havia uma banda associada ao movimento, mas havia uma estilista de moda que se destacou internacionalmente.
A provo Marijeke Koger virou a estilista preferida dos artistas-ativistas ingleses e desenhou nada menos que o figurino dos Beatles para o capa do disco Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band ;)
Os jovens holandeses dos anos 60 foram uma referência definitiva para os movimentos de contracultura que surgiram em Londres nas décadas seguintes, um ideal de questionamento ao status quo.
Pasquins: revistas underground
O tabloide do Provo também marcou época, com uma concepção gráfica inovadora que impulsionou a imprensa independente não só na Holanda como em vários países – foi nessa mesma época que surgiu a revista londrina It.
Pasquins e zines underground explodiram junto com as ondas de contracultura que se seguiram em todo o mundo, como resposta aos questionamentos à grande imprensa conformista e corrupta.
Amsterdam nas nuvens
Em um determinado trecho de seu livro, Guarnaccia define bem o impacto que o Provo teve na vida de Amsterdam. Ele diz que, depois do flower power, “enquanto todas as outras sociedades ocidentais foram trazidas de volta à Terra, a sociedade holandesa ficou nas nuvens”.