Palácio Barolo, em Buenos Aires: a Divina Comédia na arquitetura
O Palácio Barolo, em Buenos Aires, é um dos grandes destaques da Avenida de Mayo, tanto por sua beleza quanto por sua história, que é muito curiosa. A arquitetura do prédio foi inspirada em um dos maiores clássicos da literatura de todos os tempos: a Divina Comédia.
Da Avenida de Mayo, já é possível ver a divisão do edifício em diferentes partes, assim como o livro de Dante Alighieri. Os subsolos e o térreo são o inferno, os 14 andares intermediários são o purgatório e a parte mais estreita do prédio representa o paraíso. No alto da torre, há um farol que, ainda na analogia, seria a luz divina.
Eu já tinha viajado para Buenos Aires outras vezes e, em duas dessas viagens, me hospedei no hostel Milhouse Avenue, que fica praticamente em frente ao Palácio Barolo. Cada vez que eu passava por ali, ficava fascinada com a arquitetura – que tem um pouquinho de art nouveau, um pouquinho de art déco, mas é na verdade eclética e única.
Visitei o “inferno” do Palácio Barolo algumas vezes antes de conseguir fazer uma visita guiada para ver o prédio inteiro. Eu simplesmente entrava para ver o hall e ficava intrigada com as gárgulas e as inscrições em latim no teto. E posso dizer: mesmo que você não faça o tour completo, dê um pulo no palácio quando estiver nos arredores da Plaza del Congresso. A fachada e o hall já valem a pena!
Arquitetura inspirada na Divina Comédia
Na época da Primeira Guerra Mundial, Buenos Aires recebeu uma onda de imigrantes europeus, muitos vindos da Itália. O empresário Luigi Barolo, que tinha chegado à Argentina em 1890 e feito fortuna com uma fábrica de tecidos, resolveu criar um prédio comercial. Ele usaria alguns andares para sua empresa, e alugaria os demais escritórios para outros empreendedores como ele abrirem seus negócios.
Luigi Barolo encomendou a construção ao arquiteto Mario Palanti, também italiano. Os dois criaram um projeto cheio de simbolismo, e com muitas referências à arquitetura europeia, à maçonaria e, principalmente, à obra de Dante Alighieri, ícone da cultura italiana.
Mario e Luigi (hehehe) eram grandes admiradores do célebre poeta italiano e elaboraram cada detalhe da construção como uma alegoria de sua obra prima. Todos os elementos decorativos ou utilitários – maçanetas, luminárias, elevadores etc. – faziam parte do projeto, de forma integrada e altamente conceitual.
Interior do Palácio Barolo: O Inferno de Dante
Logo no térreo a gente já encontra muitos elementos interessantes. A começar pelas 9 abóbadas no teto, simbolizando os 9 níveis do inferno de Dante. As arcadas são decoradas por gárgulas e citações em latim – algumas da Bíblia, outras de Virgílio (poeta romano dos tempos de Júlio César, e personagem da Divina Comédia que acompanha Dante em sua jornada pelo inferno).
Depois que descobri que visitar mansões de alquimistas é um excelente programa nas viagens, aprendi a identificar alguns elementos e notei que o Palácio Barolo também tem algumas referências da alquimia e da simbologia maçônica. Um exemplo é o padrão do piso no térreo, que forma quadrados sobrepostos, uma representação da transição.
Os elevadores (que também são 9 no total!) escondem mais algumas pistas: a letra A é desenhada como o compasso e o esquadro, o ponteiro do mostrador é uma pequena flor de lis… E, assim, cada detalhe se revela uma pequena surpresa. Nada foi colocado na arquitetura do Palácio por acaso.
Purgatório: escritórios da década de 20
Desvendados os mistérios do inferno, finalmente chegou a hora de conhecer os andares que eu ainda não conhecia! Entrar num daqueles elevadores de porta pantográfica é como viajar no tempo. E lá vamos nós para 1923!
Aqui, vemos uma parte bastante funcional do prédio, com corredores de escritórios e salas comerciais – vários ainda hoje em atividade. O tour inclui uma parada em um dos antigos escritórios, que se mantém preservado como na era na década de 20, com móveis e objetos de época.
A guia nos contou histórias do início do século e mostrou mais alguns detalhes do projeto de Palanti que talvez tivessem passado despercebidos. Os 14 andares representam, de dois em dois, os 7 níveis do purgatório pelos quais Dante passa, expurgando os 7 pecados capitais, antes de chegar ao paraíso.
Mas a maior surpresa para mim foi reparar que o vão central é outra analogia perfeita com a Divina Comédia! A gente consegue ver as pessoas circulando pelo térreo assim como, no livro, as almas que estão no purgatório conseguem assistir às punições das almas que foram para o inferno. É incrível como eles traduziram a literatura na arquitetura!
Farol e mirante do Palácio Barolo: o Paraíso
Continuamos subindo, como Dante, em direção ao paraíso. No total, a gente sobe 99 metros desde o nível da rua – o mesmo número de cantos da Divina Comédia. Nos últimos 6 lances para chegar ao topo, já não tem elevador. A escada vai ficando mais estreita, e até o teto vai ficando mais baixo. A expectativa para chegar ao paraíso aumenta!
No 20º andar, a vista que antes a gente espiava pelas janelas se apresenta 360 graus, pelas sacadas do Palácio Barolo. A Plaza del Congresso fica ainda mais bonita, com suas árvores e chafarizes em meio à infinidade de prédios do centro portenho.
Mas o gran finale da subida é, claro, o farol da torre. A gente vai até a orbe de vidro onde fica o farol, lá no alto mesmo, com Buenos Aires aos nossos pés. Dá o maior nervoso, mas é muito legal! O maquinário do farol girando quase competia com a vista pela minha atenção, também é muito interessante de ver!
Fixação por Dante Alighieri
Luigi Barolo, como muitos europeus na época da guerra, via a Europa entrando em colapso e temia pelo valioso patrimônio que poderia perdido.
Ele queria que seu palácio preservasse um pouco daquilo que ele mais admirava na Itália e, segundo dizem, pensava em levar as cinzas do poeta para Buenos Aires e colocá-las em uma cripta no hall central edifício… Mas isso jamais aconteceu e os restos mortais de Dante estão direitinho lá em Ravena, na Itália.
Depois de 4 anos de trabalho, a construção ficou pronta, em 1923. A data de inauguração do prédio não poderia ter sido melhor: 7 de junho, aniversário de Dante Alighieri. Uma triste coincidência que o prédio tenha sido inaugurado somente após a morte de Luigi Barolo, assim como a terceira parte da Divina Comédia foi publicada somente após a morte de Dante.
Palácio Barolo entrou para a história
Considerado o primeiro arranha-céu da América do Sul, o Palácio Barolo foi o prédio mais alto não apenas da Argentina, mas de todo o continente, até 1935, quando o edifício Kavanagh foi erguido perto da Plaza San Martín.
As técnicas de construção usadas foram inovadoras na época e a obra teve que ter uma licença especial da prefeitura – era quase 4 vezes mais alta que os demais prédios da região. Contam os portenhos que muitos moradores da cidade tinham medo de passar pelo Palácio com medo de que ele fosse cair, de tão alto!
Se a Europa estava em crise no entreguerras, Buenos Aires estava vivendo uma época de ouro, despontando como uma capital mundial, e construções como essa são símbolo desse período. Em 1997, o Palacio Barolo foi reconhecido como Monumento Histórico.
Quem já visitou Montevidéu pode reparar a semelhança: o arquiteto Mario Palanti também assina o belíssimo Palácio Salvo na Praça da Independência, que se tornou um cartão postal da capital uruguaia :)
Como fazer o tour do Palácio Barolo
O tour pelo Palácio Barolo tem um dos ingressos mais caros entre as atrações de Buenos Aires – custa 920 pesos. Mas para quem curte arquitetura, história e literatura é um passeio bem legal! Se o roteiro ou o orçamento da viagem estiverem apertados, dê ao menos uma passadinha pelo prédio para ver a fachada e o hall. Estação de metrô mais próxima é Saens Peña.
Ideal é aproveitar um dia de céu aberto, para ter uma boa vista da torre. As visitas guiadas têm 1h30 de duração e podem ser realizadas de segunda a sábado, exceto terças. Os horários vão de 10h às 19h mas variam um pouco de acordo com o dia da semana (e o preço também) – você pode ver a disponibilidade aqui.
É importante fazer reserva pois vários horários ficam lotados. Para fazer a reserva direto pelo Whatsapp (+54 911 6915 2385), achei o processo meio enrolado pois tem essas questões de horário, preço, número de pessoas etc. e eles levam mais de 1 dia para responder cada coisa. Depois, o pagamento é feito meia hora antes, no quiosque fica no hall de entrada, somente em dinheiro (não aceita cartão etc.). Achei mais prático fazer a reserva online por esse site.
O Pensador de Rodin: mais um pouquinho da Divina Comédia
Para completar o passeio, estique até a Plaza del Congresso para ver O Pensador, escultura de Auguste Rodin que, curiosamente, também tem ligação com a Divina Comédia.
O famoso artista francês tinha o hábito de fazer diversas versões da mesma peça, em diferentes tamanhos e materiais, como parte de seu processo criativo. A figura do Pensador foi originalmente criada como um dos personagens de uma obra muito maior, A Porta do Inferno, que tinha como inspiração o Inferno de Dante.
O personagem acabou ganhando significado próprio e Rodin criou dali uma de suas esculturas mais representativas. Buenos Aires tem uma das 8 esculturas de bronze de O Pensador que foram feitas e assinadas por Rodin (outras 14 réplicas foram feitas após a morte do artista) – e você pode ver bem ali, na Plaza del Congresso. Chave de ouro para fechar o passeio super cultural!
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