Em Sintra nos passos de Eça de Queiroz
Não posso dizer que sou versada em literatura portuguesa – li na época da escola aqueles livros que a professora mandava, não muito mais que isso. Mas em Sintra “conheci” Eça de Queiroz e deixei ele me guiar pela vila mais bonita de Portugal.
Sintra escreveu a história de Eça, e ele escreveu tantas outras sobre ela. Eu fui descobrindo coisas fascinantes sobre os dois a cada palácio e quinta que visitava. Foi um roteiro divertidíssimo que me levou a ler e conhecer melhor esse escritor que usava palavras bonitas para jogar as ideias mais malucas na cara da alta sociedade oitocentista :D
“Vi-a numa noite doce, em que o rouxinol cantava e todo o céu se estrelava, luminoso pavilhão. Era Sintra! Sinto ainda o doce correr das fontes e a sombra nas nossas caras das árvores do Ramalhão” (A Tragédia da Rua das Flores)
Palácio da Pena
Alguns de seus lugares preferidos estão no capítulo 8 de Os Maias, que praticamente pode servir como um guia de viagem da Sintra Queirosiana. Quase 150 anos já se passaram desde a publicação de seus romances, e Sintra ainda continua do jeitinho que ele descreveu (talvez agora mais cheia de turistas… rs).
Enquanto o protagonista Carlos leva seu amigo Cruges para conhecer a “vila velha”, Eça celebra as belezas desse lugar que ele amava e descreve o Palácio da Pena de um jeito quase místico:
“Subia no pleno resplendor do dia, destacando vigorosamente num relevo nítido sobre o fundo de céu azul claro, o cume airoso da serra, toda cor de violeta escura, coroada pelo castelo da Pena, romântico e solitário no alto, com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no ar, e as cúpulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro” (Os Maias)
Chegamos no Parque Nacional da Pena pelo Vale dos Lagos e fizemos um percurso de meia hora pelo “parque sombrio” até chegar ao Palácio colorido. O lugar é praticamente um jardim botânico, com árvores trazidas do mundo inteiro, algumas até da Nova Zelândia!
Talvez por Eça ter escrito boa parte de suas obras enquanto morava no exterior (seguiu carreira diplomática e foi cônsul de Portugal em Cuba, no Reino Unido e na França), as descrições dos cenários de Sintra têm um certo ar romântico. Mas garanto que, mesmo que a saudade tenha servido como tempero, os lugares na “vida real” não decepcionam, são mesmo deslumbrantes.
Palácio de Seteais
Nós ainda tivemos uma sorte maior que a do maestro Cruges: pudemos ver o Palácio de Seteais em toda a sua beleza, enquanto o maestro se deparou com um jardim e um casarão abandonados, bem diferentes da lembrança de infância que ele tinha daquele lugar…
“Ao chegar a Seteais, Cruges teve uma desilusão diante daquele vasto terreiro coberto de erva, com o palacete ao fundo, enxovalhado, de vidraças partidas, e erguendo pomposamente sobre o arco, em pleno céu, o seu grande escudo de armas” (Os Maias)
Hoje, no Palácio de Seteais, funciona um hotel de 5 estrelas que traz de volta o luxo daquela Sintra oitocentista. Mesmo optando por uma hospedagem mais simples numa das quintas tradicionais da região, conhecemos o palácio por dentro em um jantar especial (daqueles que fazem o tempo parar, ao som de piano e tudo) no restaurante do hotel ♥
Mas ao menos um trechinho de Os Maias ainda dá para reconhecer em Seteais: o arco que domina o jardim do palácio continua lá, emoldurando a vista para o castelo da Pena “numa composição quase fantástica, como a ilustração de uma bela lenda de cavalaria e de amor” (tem que atravessar o arco e olhar de dentro do pátio para ter a essa vista).
Essa lenda, que Eça de Queiroz menciona assim en passant, até hoje é contada em Sintra. Ela diz que, na conquista de Portugal, um cavaleiro cristão se apaixonou por uma rapariga moura amaldiçoada, que morreria ao dar seu sétimo “ai”. Entre suspiros de amor e de susto, o feitiço se consuma e o cavaleiro termina de coração partido.
“Quantos luares eu lá vi?
Que doces manhãs d’Abril?
E os ais que soltei ali
Não foram sete mas mil!”
(Os Maias)
Tapa na cara da sociedade
Sintra inspirava liberdade para artistas e escritores do século 19. Por ser perto o suficiente da capital, mas distante dos olhares críticos da alta sociedade lisboeta, era um refúgio para quem queria escapar do moralismo e do clima de decadência que dominava as capitais europeias no “fin de siècle”. Por isso era também o lugar dos amores proibidos e das aventuras.
Não tinha lugar melhor para servir de inspiração e de cenário para um escritor que gostava de ironizar a vida portuguesa naquela época. Eça de Queiroz fazia críticas sociais e brincava com tabus sem o menor pudor para cutucar a hipocrisia burguesa.
À frente do movimento realista, ele gostava de experimentar com os conceitos recém surgidos da psicologia, e por isso colocava seus personagens em situações que questionam a influência do meio sobre o indivíduo ou em relações que desafiam a interdição moral (basta ver a história de amor de Os Maias, né).
O Mistério da Estrada de Sintra
Eça de Queiroz gostava tanto de fazer experiências que um dia se juntou com seu amigo Ramalho Ortigão numa trollagem épica que resultou no primeiro romance policial da literatura portuguesa. Em julho de 1870, os dois começaram a enviar cartas anônimas para o jornal Diário de Notícias, relatando um crime que teria acontecido na estrada de Sintra.
Eles capricharam nas peripécias inverossímeis para parodiar o gosto do público da época pelos relatos de mistério melodramáticos. A história era mentira, mas rendeu reportagens durante 2 meses no jornal, e a polícia chegou a abrir investigação para buscar indícios do rapto e do homicídio contados nas cartas (!!!). A zoação recebeu sua primeira versão em livro 14 anos depois.
“Montávamos dois cavalos que F… tem na sua quinta (…) Era ao fim da tarde quando atravessámos a charneca. A melancolia do lugar e da hora tinha-se-nos comunicado, e vínhamos silenciosos, abstraídos na paisagem, caminhando a passo” (O Mistério da Estrada de Sintra)
Hotel Lawrence
Do poeta britânico George Byron ao maestro alemão Richard Strauss, intelectuais de toda a Europa conviviam, debatiam ideias modernas e farreavam nos hotéis de Sintra. Na época havia três: o Nunes, que era o hotel dos boêmios e fanfarrões, o Vitor, que também funcionava como uma espécie de cassino, e o Lawrence, que era o mais requintado.
O Lawrence é o único hotel da época que ainda existe, e por isso inclusive leva o título de hotel mais antigo da Península Ibérica. De tantas menções nos livros de Eça, vale a pena ao menos dar uma passadinha para ver o lugar que foi ponto de encontro da aristocracia e da intelectualidade portuguesa.
“O criado conhecia muito bem o Sr. Dâmaso Salcede. Ainda na véspera pela manhã o vira entrar defronte, no bilhar, com um sujeito de barbas pretas… Devia estar na Lawrence, porque só com raparigas e em pândega é que o Sr. Dâmaso vinha para o Nunes” (Os Maias)
Paço da Vila de Sintra
Chegando no centro histórico da “vila velha”, merece uma visita o Palácio Nacional de Sintra, que mistura a arquitetura moura com a lusitana, criando o estilo Mudejar. Os mosaicos de azulejos árabes e os murais de azulejos portugueses se alternam a cada sala, é bem interessante.
Ao longo dos séculos, os reis portugueses fizeram várias modificações no antigo palácio mouro: Dom João I mandou construir as cozinhas com as enormes chaminés, que se tornaram o símbolo da vila, e Dom Manuel I acrescentou detalhes na decoração que fazem ligação com outros monumentos de Lisboa (como a Torre de Belém) e do Centro de Portugal (como o Convento de Cristo).
“E foi o que mais lhe agradou – este maciço e silencioso palácio, sem florões e sem torres, patriarcalmente assentado entre o casario da vila, com as suas belas janelas manuelinas que lhe fazem um nobre semblante real, o vale aos pés, frondoso e fresco, e no alto as duas chaminés colossais, disformes, resumindo tudo, como se essa residência fosse toda ela uma cozinha talhada às proporções de uma gula de rei que cada dia come todo um reino…” (Os Maias)
Não te esqueçam as queijadas!
Cruges e Carlos estavam saindo para o passeio, a mãe do maestro gritou pela janela “Olha! Não te esqueçam as queijadas!”. Ela sabia bem que Sintra tem algumas das pastelarias mais famosas do país, que fazem todos aqueles doces típicos portugueses, alguns árabes e brasileiros também.
Seja na simpática Piriquita (que fica na rua em frente ao Paço da Vila) ou na Fábrica das Verdadeiras Queijadas da Sapa (perto da estação de trem), esse é o jeito perfeito de terminar o roteiro queirosiano. Não deixe o maestro Cruges esquecer de levar as queijadas para a mãe! :)
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