Uma viagem pela Croácia seguindo o som da Klapa
Em agosto de 2018, eu e minha amiga Helena nos encontramos na Croácia para começar um projeto sobre o canto feminino no leste europeu. Nossa ideia era filmar performances e entrevistas com as descobertas sonoras no nosso caminho para realizar uma série documental. Depois da Croácia, gravamos também na Bósnia, na Bulgária e em outros cantos.
Pra quem não sabe, além de perdidamente apaixonada por viajar e conhecer novas culturas e paisagens, trabalho com fotografia e vídeo. Helena é portuguesa e estava vindo de um trabalho como VJ num festival na Hungria; eu, chegada diretamente do Brasil, peguei um vôo low-cost de Bruxelas para Rijeka.
Zadar foi nosso ponto de encontro. Não nos víamos há um ano, então a alegria na rodoviária foi enorme! Passamos apenas um dia e uma noite lá e dormimos num albergue muito bacana, próximo à rodoviária, cujo funcionário, extremamente simpático e prestativo, possuía uma mecha lilás nos cabelos já mais grisalhos, sem saber nos explicar o porquê. Infelizmente não tenho nenhuma foto dele para mostrar. Vocês vão ter que acreditar no meu relato. Olha que coisa mais anos 90.
O tempo que passamos em Zadar foi o suficiente para ir à praia, comer mariscos à noite na parte medieval da cidade e lavar nossas roupas na manhã seguinte.
Na lavanderia, enquanto esperávamos, conversamos com um senhor sobre nossa viagem e, quando lhe falamos de nossa busca por cantos tradicionais, ele nos contou um pouco sobre a Klapa.
Klapa, o canto folclórico da Croácia
De maneira bastante sucinta e simplificada, Klapa é o nome dado a um fenômeno de canto folclórico tradicional ainda muito presente na Croácia. A palavra Klapa surgiu no norte da Itália, em Trieste, cidade que faz fronteira com a Eslovênia, e se traduz por “grupo de amigos” ou “pessoas unidas por um grupo”.
A tradição do canto encontra suas origens no século 19, na região da Dalmácia, que hoje se estende de Zadar até Dubrovnik, no sul da Croácia.
Essa sempre foi uma região de muita troca mercantil e encontros com marinheiros e pessoas de outros países. A mescla entre culturas trouxe influências de harmonias e ritmos que acabaram por ser absorvidos pelos locais.
O que o senhor que conhecemos nos explicou é que quanto mais para o sul, mais forte é a tradição. No dia seguinte, então, decidimos descer para Skradin, uma pequena cidade que acolhe a entrada de um dos Parques Nacionais mais conhecidos da Croácia, Krka.
Cachoeiras no Parque Nacional de Krka
A Croácia é rica em belezas naturais e tem 8 parques nacionais espalhados por seu território. Dois dos parques mais famosos são Plitvice e Krka, que são grandes complexos de lagos e cachoeiras, com as águas verdinhas dos Bálcãs. Plitvice é o maior, mais antigo, e recebeu título de Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.
Mas em nossa viagem optamos por visitar Krka ao invés de Plitvice, por ser ligeiramente mais barato, mais perto, menos cheio e, finalmente, mas não menos importante, porque em Krka tem algumas áreas em que é permitido entrar na água (enquanto em Plitvice você só pode caminhar pelas trilhas e fotografar, mas não se banhar).
O parque tem trilhas e pontes que fazem um trajeto perfeito pelas principais cascatas, e tem passeios de barco também. Foi um dia delicioso e o passeio valeu super a pena! Ajudou a refrescar um pouco o calor intenso do mês de agosto.
Ainda em Skradin, perguntamos para locais sobre Klapa e, mais uma vez, sugeriram que continuássemos descendo em direção ao sul. Os destinos mais mencionados foram Split e Omis. Então lá fomos nós.
Split: um encontro com o canto da Croácia
Pegamos nossas mochilas, desfizemos nosso acampamento debaixo da árvore e fomos para a estrada. Nossa carona, um casal espanhol, nos levou diretamente para Split – um dos destinos de verão mais agitados da Europa, com praias paradisíacas e construções históricas.
Nossa descoberta sobre a tradição musical da Croácia já havia se dado de maneira bastante inusitada e orgânica e continuamos tendo sorte na nossa busca. Conversando com a atendente de um albergue, ela nos deu o contato de uma amiga que é tenora de um dos grupos de Klapa femininos mais prestigiados da região, chamado Luše.
Combinamos então de encontrá-las para podermos gravá-las cantando algumas canções. Tivemos o privilégio de conhecer 6 jovens mulheres que cantavam com harmonia angelical e força estrondosa.
As principais características da Klapa são o canto à cappella, a sintonia das vozes em homofonia e as letras típicas da realidade do dia-a-dia. A formação do grupo geralmente varia entre 5 e 8 componentes, reunindo pelo menos um tenor, um segundo tenor, um barítono e um baixo. Existe quase sempre um destaque principal que guia as outras vozes, que têm como objetivo uma harmonia tão perfeita que parecem se fundir.
Suas especificidades sonoras decorrentes das tonalidades semelhantes e do aspecto harmonioso entre as vozes fazem pensar em outros cantos tradicionais, como o famoso Canto Alentejano, no sul de Portugal. Ambos trazem uma sensação de aproximação de algo quase divino e etéreo, ao mesmo tempo em que possuem temas bastante mundanos, sendo os mais recorrentes sobre o amor, o vinho, a pátria e o mar.
O resultado é um misto entre espiritualidade e intangibilidade manifestadas a partir de um senso do coletivo e do cotidiano, que acabam por ser a expressão de uma identidade cultural e histórica. Tão importante que em 2012, a Croácia ganhou mais um título da UNESCO, que inscreveu a Klapa como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
O mais impressionante é que mesmo sem entender uma palavra do que estava sendo dito, a força das vozes e a potência da sintonia eram tão comoventes e emocionantes, que atravessavam qualquer barreira de linguagem.
Onde ver apresentações de Kapla em Split
Split se provou um destino fabuloso para quem quer presenciar apresentações de Klapa. Bem no centro histórico da cidade, o antigo Vestíbulo do Palácio de Diocleciano se tornou uma espécie de palco de Kapla por excelência.
A construção de pedra é arredondada por dentro e sobe como uma torre, mas é aberta em cima, possuindo não só uma grandeza visual como também uma estrutura favorável ao eco e ao equilíbrio ideal entre concentração e dispersão sonora. Além disso, a própria disposição dos grupos costuma ser em formato de um semicírculo, o que condiz com o espaço.
No verão, é comum haver grupos de Klapa ensaiando ou mesmo se apresentando para o público ali no Vestíbulo, e os passantes podem parar e apreciar o espetáculo gratuito. Alguns dos grupos mais famosos também fazem concertos em teatros, igrejas e outros locais da cidade.
Em Split há também um Museu de Etnografia, onde se pode encontrar trajes típicos e muito da história da cultura e da tradição dálmata.
A tradição da Kapla se mantém
Dizem os locais que todo grupo de Kapla começa do mesmo jeito: um grupo de bons amigos e a música que faz parte da vida deles.
Conversando com as meninas do Luše, elas nos contaram que as canções populares da Kapla se espalhavam apenas através da oralidade, e surgiam espontaneamente durante o pôr-do-sol depois de um longo dia de trabalho, quando os homens se reuniam para beber. Tipicamente, cada cidade possuía seu repertório de letras únicas para suas canções e um grupo de Klapa que as representava.
Hoje em dia, esta manifestação musical ficou mais diversa, com grupos femininos ganhando popularidade nos últimos anos – além do surgimento de variedades que aproximaram o canto da música pop romântica, com arranjos instrumentais.
Os habitantes mais velhos ainda carregam a tradição de maneira espontânea e em meio a festas locais e religiosas, enquanto grupos de jovens cantores participam de festivais e competições.
Um dos festivais mais significativos e importantes é o que ocorre todos os anos, entre junho e julho, na belíssima cidade de Omiš, no sul da Croácia, no coração da Dalmácia. O Festival de Omiš começou em 1967 e acolhe os melhores grupos do país, sejam eles femininos, masculinos ou mistos.
A viagem pela Croácia foi super gostosa, balanceando paisagens estonteantes com essa sonoridade especial. Muito além dos cenários de Game of Thrones e das praias belíssimas e badaladas, a Croácia revela a riqueza de sua cultura e história para quem se permite conhecer um pouco mais de suas raízes e tradições.